
Alexsandro Araujo
Ter uma especialização é uma garantia de sucesso, quando tudo pode se resumir posteriormente na famosa frase: “ você não tem o perfil para a vaga”? Como entender o viés inconsciente?
O Conceito de Campo em Bourdieu
Para melhor entender, o campo na teoria de Bourdieu (1998), podemos realmente compara-lo a um campo de futebol, um espaço de práticas especificas, relativamente autônomo, dotado de uma experiência própria, com regras particulares e um sistema de coordenadas.
Os campos são como espaços de lutas por pertencimento e poder onde estão dispostos vários tipos de capitais, simbólicos, econômicos, políticos, culturais e sociais, em disputa.
Um campo faz parte do espaço social – e, portanto, toma deles as suas características – conceito que Bourdieu descreve como espaço de posições que neles estão situados, que, a depender do peso e volume global dos capitais que possuem, são distribuídas em posições dominadas e dominantes. Os mais importantes capitais em nossa cultura são o capital econômico e o capital cultural. O capital cultural é a incorporação quantitativa e cumulativa de qualidades, ou seja, a aquisição progressiva de conhecimento, o capital econômico é a acumulação de bens econômicos e financeiros. (LIMA D. M., 2012, p. 45. apud Bourdieu, 1996b, p.61).
Capital cultural e o acesso aos campos
Para entrar em qualquer campo, se faz necessário o porte de um capital cultural especifico, o qual é influenciado através do habitus adquirido dentro de cada campo para manejar esse sistema de coordenadas imposto por ele.
Compreender a gênese social de um campo e apreender aquilo que faz a necessidade especifica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se geram, explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos do produtores e obras por eles produzidas. (LIMA D. M., 2012, p. 44. apud Bourdieu, 1998, Pg. 69).
De acordo com Crossley (2018), pode-se usar uma equação para entender as práticas dos indivíduos na sociedade: “[(habitus) (capital)] + campo = pratica”.
Os indivíduos dependem de um conhecimento antecipado do jogo dentro dos campos os quais pretendem participar, que é o resultado do habitus e do capital adquirido durante a sua vida somado a sua experiência do campo. Caso aconteça uma mudança de forma sutil, anacrônica ao entendimento do sujeito em relação ao campo ele irá sentir um sentimento de estranheza por não conhecer as novas regras do campo. Por exemplo, quando um novo rico começa a frequentar um ambiente mais sofisticado e cheio de normas as quais ele desconhece.
Isso irá, consequentemente, criar um sentimento de “histerese”. Bourdieu sentiu isso ao mudar do campo para cidade por causa do trabalho do seu pai. O habitus não se alinha nem reconhece as normas do campo e a pratica fica desalinhada com as normas prejudicando a pratica ou a atuação do indivíduo como uma espécie de sentir-se constrangido com a nova situação.
Ainda, sob uma perspectiva Bourdieusiana, o capital se apropriou dos Campos nos espaços empresariais, acadêmicos institucionais e pode-se originar daí uma ideia de pertencimento ou não dos indivíduos de acordo com o seu habitus. Um poder simbólico que constrange o ator social quando ele está em um campo o qual não está em conformidade com o seu habitus, esse poder simbólico as vezes não é sentido pelos atores.
O Capital simbólico e a exclusão Invisível
Segundo Souza (2019), existe uma estruturação na sociedade, a qual determina, de certa forma, a probabilidade de sucesso em determinadas escolhas feitas pelos indivíduos dos estratos sociais mais altos. Ou seja, a origem familiar vai ser um fator que pode gerar condições, mais favoráveis ou não, para se obter o “sucesso” econômico e social, salvo algumas exceções.
Na base da nova hierarquia social moderna está a luta entre indivíduos e classes sociais pelo acesso a capitais, ou seja, tudo aquilo que funcione como facilitador na competição social por todos os tipos de recursos escassos. Como, na verdade, todos os recursos são escassos – e não apenas os recursos materiais como carros, roupas e casas, mas também os imateriais como prestigio, reconhecimento, respeito, charme ou beleza –, toda nossa vida é pré-decidida pela posse ou ausência desses capitais. (SOUZA, 2019, p. 96).
Para Souza (2019), a herança cultural funciona como outro tipo de capital além do capital econômico, o qual se torna um fator condicionante e extremante favorável a mobilidade social.
A tentativa de Bourdieu de se afastar de uma concepção materialista estreita de poder e desigualdade ao introduzir os conceitos de capital cultural, social e simbólico é bem conhecida. Em um artigo-chave sobre a classe, ele deixa claro que ao fazer isso, distingue-se do marxismo (BOURDIEU, 1998C [2001]). O poder e a dominância são derivados não apenas da posse e recursos materiais, mas também da posse de recursos culturais e sociais. (CROSSLEY, 2018, p. 120).
Como as elites brasileiras transferem para seus descendentes a herança, tanto patrimonial quanto econômica, a classe média transfere para seus filhos a educação como um patrimônio em forma de “capital cultural”, além da preocupação e as condições de cuidados com a saúde.
Preconceito linguístico e exclusão social
Bagno (2009), aborda uma situação em que pessoas com altas condições econômicas e patrimoniais, a qual, cita o caso em que: “grandes fazendeiros”, donos de indústrias e de cabeças de gado, os quais não precisam se preocupar com a norma culta da língua, o capital cultural, poderão falar normalmente com seu sotaque “caipira” sem sofrer qualquer tipo de preconceito em relação a como se deve falar o português “padrão”. A sua fala “caipira”, com todos os erros sintáticos de português está amparada pela sua posição social dominante que lhe dá prestigio e status.
Ou seja, para Bagno (2009, p. 90), “[...] o domínio da norma-padrão de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto”. Pois serão discriminadas e sofrerão preconceito independente do seu conhecimento, por causa da sua condição social e da não conformidade aos padrões de beleza e sua origem social e geográfica se torna um peso.
Para Almeida (2019), o racismo trás junto consigo outras categorias associadas que são a discriminação e o preconceito, “associada a origem geográfica, religião e língua denominados por “racismo cultural”. Torna-se difícil enxergar a educação como fator de mobilidade social na vida dos indivíduos, uma vez que o peso da carga cultural e de sua origem podem causar desfalques nas capacidades educacionais necessárias à aprendizagem.
Por meio do arbitrário cultural, condena-se indiretamente a possibilidade de mobilidade social, pois o aprendizado não depende só da memorização, mas também de uma carga cultural e aprendizado para poder assimilar melhor o que é falado pelos professores nas escolas, Bourdieu (2014).
Achar que vai ensinar a norma-padrão a uma criança pobre para que e ela “suba de vida” é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas na penitenciarias para resolver o problema da violência urbana. (BAGNO, 2009, p. 90).
Para Bagno (2009, p. 91), “É preciso, isto sim, o acesso à educação em seu sentido mais amplo, aos bens culturais, à saúde e à habitação, ao transporte de boa qualidade, à vida digna de cidadão merecedor de todo respeito”.
O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo, pois, enquanto vivemos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados é, se não hipócrita e cínica, pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua. (BAGNO, 2009, p. 91).
Além da competição no mercado de trabalho por uma vaga de emprego a maioria dos indivíduos tem ainda que lutar para permanecer e entender rapidamente as logicas dos campos nos quais estão inseridos. A disposição e a posição dos indivíduos podem favorecer a sua permanência ou não.
Na perspectiva de Bagno (2009), seria ingenuidade pensar a educação como fator determinante de mudanças, sem levar em consideração a formação econômica e cultural da sociedade brasileira, alicerçada nas diferenças de classes, raça, escravidão e desigualdade socioeconômica. Todavia, pode-se perceber na sociedade a existência de uma enorme massa de desempregados com qualificação profissional sem trabalhar ou trabalhando em subempregos, como também professores ganhando um salário insultuoso em se comparando com a envergadura e a responsabilidade do seu trabalho.
A falácia da meritocracia
Na perspectiva de Bourdieu (2014), a autonomia relativa do sistema de ensino obedece a uma hegemonia de classe social e política na medida em que a sua função é a reprodução através da educação, da conservação da cultura, da ordem social e do comportamento de todo corpo social para que ele funcione de uma forma coesa; num conceito estrutural, a partir de (DURKHEIM, 2012), “para que a estrutura social funcione perfeitamente”.
Segundo (SOUZA, 2019), “o capital econômico é transmitido “pelo sangue”, no entanto, [...] do mesmo jeito que a elite faz com o dinheiro a classe média vai perceber o conhecimento valorizado como algo que deve ser exclusivo a sua classe social”. O conhecimento duramente obtido pelo esforço disciplinado vai parecer ao indivíduo como sendo interno e inato a não como privilégios de classe.
Esse autoengano tende a ser, inclusive, maior na classe média que na elite econômica. É que o capital cultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo, exige sempre esforço pela sua assimilação. Por isso, a incorporação de conhecimento arduamente obtido pelo esforço disciplinado aparece ao indivíduo como interna e inata, como fazendo parte da sua personalidade mesma e, portanto, indissociável de si, ao contrário do dinheiro, que é percebido como algo externo a personalidade. Por conta disso, a classe média é a classe por excelência da falácia da meritocracia. (SOUZA, 2019, p. 101).
A educação, de acordo com Mészáros (2008), tem uma concepção tendenciosa em manter o proletariado “”no seu lugar” criando o quanto de conformismo for possível para manter o status quo.
[...] ela exclui a esmagadora maioria da humanidade do âmbito da ação como sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem apenas como objetos, (e manipulados no mesmo sentido), em nome da suposta superioridade da elite: “meritocrática”, “tecnocrática”, “empresarial” ou o que quer que seja. (MÉSZÁROS, 2008, p. 49).
Nas palavras de Souza (2019), mesmo de posse do diploma de conclusão de ensino médio o pobre não tem o mesmo prestigio como acontece com os filhos da elite e classe média.
O pobre excluído, ao concluir a escola como analfabeto funcional, como tantos entre nós, se sente culpado do próprio fracasso e tão burro e preguiçoso quanto os privilegiados, que receberam tudo “de mão beijada” desde o berço. O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa pelo destino que lhe foi preparado secularmente por seus algozes. (SOUZA, 2019, p. 107).
De acordo com (SOUZA, 2019, p. 109), “podemos perceber como tradições e heranças invisíveis de classe predeterminam a vida dos indivíduos como um destino. É claro que existem exceções, mas a regra continua a mesma”.
Em relação ao ingresso no sistema educacional francês, de acordo com Crossley (2018, p. 241), “em sua expansão do pós-guerra, o sistema francês estendeu a admissão aparentemente por mérito (no nível do ensino médio) e os padrões de avaliação”. Entretanto, o sistema implicitamente impôs regras a partir de uma conformidade no comportamento e a comunicação deveria ocorrer na escola; tais maneiras já faziam parte da educação e cultura das classes alta e média.
Devido a condição privilegiada dos ambientes familiares os quais naturalmente possuíam o capital cultural apropriados tinham vantagens em relação aos alunos mais pobre. O arbitrário cultural se torna uma barreira difícil de transpor levando em consideração que, nesse caso, o “mérito” aparenta possuir sobrenome, origem social, capital cultural, econômico e social.
Para Crossley (2018, p. 242), “As crianças de grupos que eram previamente excluídos da educação básica e média entravam na escola sem o capital cultural e linguístico apropriados para serem bem sucedidos”. O fato de o conteúdo ser, de certa forma, estranho e difícil de ser contextualizado pelos alunos consequentemente afeta também nos resultados acadêmicos e nas notas, e assim, confirmando-se a sua inferioridade e superioridades “inatas” das elites e classes médias.
De acordo com Crossley (2018), “antes da democratização da educação podia-se responsabilizar o Estado pela exclusão educacional. Depois que a escola foi aberta a todos, a culpa era dos indivíduos”.
A falta de encaixe entre as classes baixas e trabalhadoras com o campo educacional e a responsabilização dos indivíduos envolvidos por seu mau desempenho são uma forma de violência simbólica através da qual a hierarquia de classes sociais é reproduzida. (CROSSLEY, 2018, p. 242).
Conclusão
Na capa do livro de (MÉSZÁROS, 2008), “Educação para além do capital” pode-se ver uma ilustração da atual situação brasileira, uma menina descalça sentada em uma cadeira com o livro na mesa em frente de sua casa, tomando conta de seus dois irmãos pequenos, que dormem num colchão embaixo da mesa.
Como diz a autora da apresentação do livro, Ivana Jinkings: “A educação não é uma mercadoria”. A meritocracia é uma falácia diante dos fatos expostos e das condições de desigualdade e falta de equidade na sociedade brasileira que precisam ser levadas em consideração, diante dos axiomas e promessas de emancipadores educacionais voltadas para o lucro dos empresários do ramo de educação.
A mobilidade social é condicionada por capitais acumulados e herdados. Embora a educação tenha potencial emancipador, ela é limitada pelas desigualdades estruturais. A falácia da meritocracia ignora esses condicionantes e reforça a perpetuação das desigualdades sociais.
A análise crítica da meritocracia revela não apenas as barreiras estruturais que impedem a mobilidade social, mas também os obstáculos invisíveis que perpetuam a exclusão, como o viés inconsciente. Conforme Bourdieu (1998) aponta, o campo social não é um espaço neutro, mas sim um terreno onde disputas simbólicas e materiais determinam o acesso a posições privilegiadas.
Dessa forma, mesmo quando indivíduos de classes populares conquistam capital educacional por meio da graduação ou especialização, isso não garante que serão aceitos ou valorizados nos espaços acadêmicos ou profissionais.
Souza (2019) evidencia essa exclusão ao demonstrar que a mobilidade social não depende apenas do mérito, mas do reconhecimento por parte das elites que controlam os acessos aos campos mais prestigiados. Muitas vezes, as decisões de contratação ou aceitação em espaços acadêmicos são atravessadas por preconceitos implícitos, que operam de maneira subjetiva, dificultando a inserção daqueles que não correspondem ao perfil tradicionalmente dominante.
O viés inconsciente, portanto, atua como um filtro invisível, favorecendo indivíduos que já possuem características socialmente associadas ao sucesso, enquanto desqualifica outros, independentemente de suas competências.
Mészáros (2008) também contribui para essa reflexão ao destacar que o sistema educacional e o mercado de trabalho não são apenas reprodutores de desigualdades estruturais, mas também de concepções normativas sobre quem merece ou não ocupar determinados espaços. Crossley (2018) reforça essa perspectiva ao argumentar que o habitus molda não apenas as ações, mas também as percepções sobre o que é considerado talento, competência ou adequação a determinado ambiente. Isso significa que, além das desigualdades materiais, existe um componente simbólico que dificulta o reconhecimento de grupos historicamente marginalizados como legítimos ocupantes de cargos de prestígio.
Dessa forma, torna-se evidente que o esforço individual e a qualificação formal, apesar de fundamentais, não são suficientes para garantir acesso e reconhecimento no mercado de trabalho e nos campos acadêmicos. A crença na meritocracia desconsidera não apenas as barreiras estruturais, mas também os mecanismos subjetivos que mantêm determinados grupos à margem. Para romper com essas dinâmicas excludentes, é necessário não apenas questionar a lógica do mérito, mas também combater os preconceitos, explícitos e implícitos, que restringem oportunidades e perpetuam a desigualdade social.
BIBLIOGRAFIA
BAGNO, M. (2009). PRECONCEITO LIGUÍSTICO: o que é, e como se faz. São Paulo - SP: EDOÇÕES LOYOLA.
CROSSLEY, N. (2018). Pierre Bourdieu: Conceitos fundamentais. Petrópolis - RJ: VOZES.
DURKHEIM, É. (2012). As regras do metodo sociologico (1ª ed.). (W. Solon, Trad.) São Paulo - SP: EDIPRO.
MÉSZÁROS, I. (2008). A educação para além do capital (2ª ed.). (I. Tavares, Trad.) São Paulo - SP: BOITEMPO.
SOUZA, J. (2019). A elite do atraso. Rio de Janeiro - RJ: ESTAÇÃO BRASIL.
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